Entrevista: Project Earth une comunidades com missão de “plantar água” no Rio Mira

Em Odemira, há uma associação que está a unir as populações por onde passa o Rio Mira, com o objetivo de proteger a biodiversidade
Project Earth Rio Mira

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Diogo Dias Coutinho (na imagem, à esquerda) é presidente da Project Earth (Associação para a Valorização Sustentável de Regiões de Convergência), que tem feito um importante trabalho de união entre as comunidades por onde passa o Rio Mira, de forma a regenerar e proteger a biodiversidade nestes territórios. É que o curso de água em questão parte do Algarve e termina no Baixo Alentejo, duas das zonas onde mais se fala do problema da seca em Portugal. Por isso, fomos conhecer o trabalho desta associação que junta ecologia e comunidade, com a missão de educar para a importância de “plantar água”.

#Como começou a Project Earth? 

A Project Earth teve uma transformação na sua formação. Começou em 2017. Antes disso, eu e a minha mulher tínhamos já uma ligação de muitos anos a este território. Detínhamos uma propriedade, de uma antiga fábrica de cerâmica, em Sabóia, que queríamos transformar num centro para retorno rural – o CLARA. Na altura, criamos a associação Project Earth com um grupo de amigos, entre arquitetos, designers e artistas, para tentarmos refletir como é que um espaço destes pode servir de inovação e criatividade, repensando o espaço rural nas suas diversas dimensões. No entanto, o projeto não avançou, porque exigia um investimento grande na restauração da antiga fábrica. 

Mas a associação Project Earth já estava criada e, depois do Covid, reestruturamo-la integrando membros locais. Hoje, esta é representada por pessoas que vivem aqui, na zona interior do concelho de Odemira, e estamos a desenvolver um conjunto de projetos mais alinhados com o potencial do território.

#Que projetos estão a desenvolver neste momento?

Temos vários projetos:

O Aldeias à Vista, que lançámos em 2022, tem o propósito de unir as comunidades, através de eventos nas aldeias de Luzianes, Sabóia e Santa Clara-a-Velha, do concelho de Odemira. São eventos culturais que visam criar uma relação entre quem cá vive. Isto porque temos uma comunidade portuguesa envelhecida e há uma comunidade de imigrantes crescente desde os anos 1960. Mas não há muitos pontos de encontro, em que estes dois lados da comunidade podem encontrar-se e criar relação. Há as festas para os portugueses e as festas para os estrangeiros, mas não há um ponto em comum – que é um fator importante para a coesão. 

Por isso, criamos este projeto de integração das aldeias do interior, que conta com concertos, workshops, exposições e mercados de produtores locais. Os eventos acontecem rotativamente nas aldeias. Nos últimos dois anos, realizamos estes eventos mensalmente, de abril a dezembro, com 9 eventos por ano, 3 em cada aldeia. No entanto, este ano vamos fazer apenas um em cada aldeia, com ajuda da Câmara e das juntas de freguesia. O Aldeias à Vista tem resultado muito bem para este encontro das comunidades.

Depois, temos um projeto maior que está em curso e em desenvolvimento – o Guardiões do Mira -, que envolve outras 7 organizações presentes no local. Este projeto pretende unir as pessoas através de algo em comum que é o rio [Mira] e falar sobre as questões da biodiversidade, da água, do solo e da comunidade, nas suas diversas relações, desde a economia às áreas sociais. 

É um projeto que através da prática de regeneração pretende reunir a comunidade destes concelhos. É multidisciplinar, com diversas áreas de atuação: o Parlamento do Mira (processo de capacitação e envolvimento da comunidade); Residências Artísticas e Científicas (para gerar conhecimento na relação com o rio); e uma outra componente de Monitorização (desenvolvida junto das escolas, para criar afetividade e criar relação entre os miúdos e o rio, sob uma cultura de cuidar). Além disso, este projeto pretende “dar voz ao rio”, que é muito importante no espaço rural, despovoado e onde as pessoas sentem-se sem voz. 

Através de programas de eventos, congressos, residências e publicações de documentos, queremos dar voz a este território e criar pontos de ligação com o espaço urbano e com as pessoas que vivem desconectadas da realidade do que é viver no campo, de como se produzem os alimentos, de onde vem a água, da importância da floresta e da biodiversidade, entre outros aspetos.

No que diz respeito ao programa de residências artísticas, temos neste momento quatro artistas em residência. Ao mesmo tempo, estamos a co-criar um espaço onde há uma representação da realidade da vida agrícola [através do projeto Global Field 2.000m2 – Odemira], de forma a criar uma base para falarmos das questões ligadas à agricultura, através de um espaço físico, onde as mesmas estejam representadas. Fazemos ainda parte do Movimento SOS Rio Mira, em defesa do rio, entre outras intervenções.

No fundo, vamos trabalhando em vários projetos, tentando sempre explorar os processos de colaboração, percebendo o que as diferentes organizações no terreno estão a fazer e criando ligações entre elas.

#No âmbito do projeto de regeneração Guardiões do Mira, falam que é necessário “plantar água”, para evitar situações de seca que, nesta zona do país, têm sido particularmente nefastas. Como se “planta água” através deste projeto?

Este projeto nasceu desse grande tema que é a gestão da água, em todo o Algarve e Baixo Alentejo. É fundamental. Toda a gente fala disso nos cafés. Porque água é vida e sem água não se consegue viver nos territórios. 

Na base, queríamos falar do tema da água, mas não na ótica dos problemas, ou seja, da escassez, da má gestão e da desigualdade da distribuição. Não queremos focar nos aspetos negativos, mas sim em algo que pode unir as pessoas e juntá-las num processo de regeneração. E o Rio Mira tem esse simbolismo: é parte do território, faz parte da identidade local, que pode unir as pessoas. É isso que nos interessa: através do rio falarmos de água, mas também de outras questões como o solo, a desertificação, todos esses assuntos. 

Em simultâneo, criamos práticas de regeneração para que possamos reverter esta situação. Muitas dessas práticas têm que ver com “plantar água”, criando ciclos que foram quebrados. 

Quando pensamos na água pensamos sempre nesse ciclo da água que evapora do oceano e cai na montanha e desce. No entanto, é a vegetação que cria humidade, cria a água e seus microciclos. À medida que os territórios foram sendo desflorestados e as monoculturas a ocupar muito terrenos, foi-se perdendo toda a humidade no solo e a capacidade deste de reter água. 

Na prática, o que estamos a fazer é juntar proprietários e a comunidade, criando uma consciência da importância de reter água no solo para que possa existir mais vegetação e biodiversidade. Porque é essa vegetação que vai gerar mais água. 

Além de as zonas rurais não terem muita voz perante o governo central e capacidade de exigir medidas dele, muitos dos problemas que enfrentamos são também locais: más práticas na forma como cuidamos do solo, como cortarmos a vegetação autóctone e plantarmos monoculturas ou privilegiamos sistemas intensivos de utilização de água. 

#Este processo de regeneração funciona também como limpeza da água existente, além de criar.

Exatamente. Esta floresta nas margens permite a contenção do solo, para que não caia no rio. Em simultâneo é feita uma filtragem.

Há uma legislação – os rios têm áreas navegáveis e áreas não navegáveis – que não está a ser cumprida. Há uma desconexão entre aquilo que as pessoas acham que é um rio limpo e aquilo que é realmente um rio limpo – com vitalidade e sistemas diversos. É esse tipo de informação que importa trazer às pessoas. 

A longo prazo, o objetivo deste projeto de regeneração do Rio Mira é criar um cordão de biodiversidade que se possa alastrar a toda esta bacia hidrográfica, desde a Serra do Caldeirão, onde o rio nasce, até Vila Nova de Mil Fontes, onde desagua.

Os rios são artérias de vida para o planeta. É através deles que a água flui, criando vida. Quando cuidamos do rio, todo o ecossistema envolvente prolifera de outra forma. E penso que se sente, a nível global e nacional, uma maior preocupação com os rios. 

#Pretendem que este projeto esteja ligado apenas a Odemira ou pretendem ser um exemplo a aplicar em outras zonas de convergência em Portugal?

Acreditamos na atuação à escala do lugar. Quando tentamos generalizar as ideias, em contextos muito diferentes, estas acabam por trazer degradação. Acreditamos na partilha de conhecimento, mas que as ações devem ser implementadas a nível do lugar e do contexto. Às vezes é perigoso importar soluções de um lado para o outro. Por isso, estamos ligados a outras associações, nacionais e internacionais, mas não temos ambição de nos tornarmos um projeto à escala nacional.

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