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Em 1992, um navio de transporte deixou escapar no oceano cerca de 30 mil bonecos de borracha. Um jornalista seguiu no seu encalço. A epopeia deu origem a um livro.
Em 1992, um navio de transporte deixou escapar no oceano cerca de 30 mil bonecos de borracha. Um jornalista seguiu o seu rasto. A epopeia deu origem a um livro.
Foi notícia por todo o mundo o navio porta-contentores encalhado no canal do Suez, no Egito, a impedir o tráfego entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho, uma das rotas comerciais mais usadas no comércio internacional. Mas esta não é a primeira vez que um grande acidente vira as atenções do mundo para a empresa de transporte e expedição de contentores Evergreen Marine.
Em 1992, um dos seus navios, o Ever Laurel, deixou escapar por acidente quase 30 mil bonecos de borracha no oceano Pacífico. Em determinado momento da viagem, dois contentores terão deslizado borda fora, provavelmente embatendo um no outro, de forma que um se abriu libertando o conteúdo: 28.800 animais de borracha, embalados individualmente em invólucros de plástico com um pedaço de cartão na parte de trás.
“De um avião que sobrevoasse o mar a baixa altitude num dia claro, os pacotes teriam parecido confetis, um grande monte de quadrados coloridos a explodir em câmara lenta sobre as ondas. Em 24 horas, a água teria dissolvido a cola. A ação das ondas teria separado o invólucro de plástico do cartão. (…) 28.800 animais de plástico produzidos em fábricas chinesas para as banheiras da América – 7.200 castores vermelhos, 7.200 sapos verdes, 7.200 tartarugas azuis e 7.200 patos amarelos – escaparam das suas embalagens de plástico e flutuaram livres.”
A descrição é de Donovan Hohn, professor de inglês e jornalista, que passou anos a seguir o rasto destes animais de plástico. A busca culminou na escrita do livro “Moby-Duck: The True Story of 28,800 Bath Toys Lost at Sea”, ainda não traduzido para Português.
Esta história pitoresca de patos, castores, sapos e tartarugas de borracha à deriva no oceano é apenas o ponto de partida de um livro que narra o acordar para a realidade de um jornalista que, até aí, nunca tinha pensado muito no problema do plástico.
Comecemos pelo princípio. Ou, pelo menos, o princípio da história para Donovan Hohn.
Em 2008, num dos trabalhos dos seus alunos, encontrou uma breve referência a um artigo de jornal dos anos 1990 sobre cerca de 30 mil brinquedos de banho perdidos no oceano Pacífico.
Donovan decidiu fazer alguma investigação para escrever uma reportagem sobre o curioso episódio. Inicialmente, julgou que o faria a partir da sua secretária, com alguns emails e telefonemas. Mas mudou de ideias quando recebeu um mapa dos oceanógrafos Curtis Ebbesmeyer e Jim Ingraham, com a marcação das prováveis rotas seguidas pelos brinquedos de borracha. Resolveu seguir no encalço dos bonecos.
Uma aventura épica. Fez várias viagens de Washington para a península do Alasca, onde a prática de beachcombing (recolha de objetos nas zonas costeiras) pareceu a Donovan uma autêntica caça ao tesouro, com muitos “piratas” a guardarem o que encontravam com uma atitude quase religiosa. Deslocando-se ao Havai, encontrou pelo caminho a Grande Ilha de Lixo do Pacífico, e visitou uma praia onde o areal é composto maioritariamente por partículas de plástico. Também esteve na China, onde os bonecos de borracha (e tantos outros) foram fabricados.
Contudo, a viagem mais dolorosa foi a que o levou pelo Estreito de Bering até ao oceano Ártico. Foi aí que finalmente compreendeu que encontrar os patos amarelos, as tartarugas azuis, os sapos verdes ou os castores vermelhos era o que menos interessava.
Em toda esta travessia, o jornalista só encontrou dois bonecos de borracha, mas conviveu de uma forma muito presente com um dos maiores problemas da humanidade: a dependência do plástico e o que ela está a provocar no ecossistema. O seu livro é isso, uma reflexão. Sobre o plástico e sobre si mesmo. Como escreveu Miguel Torga, “o que importa é partir, não é chegar”.
Nos anos 90, Curtis Ebbesmeyer e Jim Ingraham estavam a trabalhar num projeto de modelação computacional das correntes da superfície do oceano.
O plano seria lançar no mar 500 a 600 garrafas, como era padrão nestas investigações. Mas atendendo ao facto de que a taxa de recuperação de objetos no oceano Pacífico é de 2%, os bonequinhos de borracha apresentavam uma grande vantagem. Já estavam a vaguear nas águas e, sendo em tão grande número, era expectável que conseguissem recuperar não 10 a 20 objetos como habitual, mas 600.
Dez meses depois do incidente, começaram a aparecer bonecos nas zonas costeiras do Alasca, a mais de 3.000 quilómetros do local onde “abandonaram” o navio. Vários voluntários que recolhiam lixo nas praias colaboraram neste projeto de mapeamento oceanográfico registando os locais e datas de descoberta.
Em 1995, alguns dos brinquedos alcançaram o Estreito de Bering. Continuando a sua circum-navegação, era expectável que chegassem ao Atlântico por volta do ano 2000, depois de atravessarem as águas geladas do Pólo Norte. Alguns terão certamente ficado presos no gelo. Outros foram libertados pelo degelo provocado pelo aquecimento global e seguiram caminho, tendo sido encontrados, por exemplo, no Reino Unido e na Irlanda.
Nem todos os brinquedos seguiram para Norte. Como é possível ver no modelo da imagem, um número considerável terá sido arrastado pelas correntes em sentido contrário, para sul, em direção à Ásia Oriental e ao Havai. Alguns espécimes acabaram por ser encontrados até mesmo na Austrália, na Indonésia e na América do Sul.
O estudo das correntes oceânicas tem sido utilizado não só para rastrear lixo marinho, mas também para apoiar a conservação de espécies e entender melhor os efeitos do aquecimento global.
Esta queda de um contentor com 28.800 brinquedos de borracha no oceano não foi um caso isolado. Estima-se que, todos os anos, mais de 1000 contentores se percam em alto mar, muitos deles vazando o seu conteúdo. Não é fácil chegar a um número exato. Os relatórios das transportadoras não são, em geral, muito rigorosos. Muitas vezes não fazem tão-pouco referência ao número de contentores perdidos, ao seu conteúdo ou ao local onde tal aconteceu. Não existe uma legislação internacional para harmonizar a informação.
Muitos destes contentores transportam plástico. Os efeitos da poluição por plásticos na biodiversidade são já bastante conhecidos, porém há um lado menos visível. Estes materiais tendem a absorver os poluentes na água. Um dos bonecos de borracha encontrados pelo jornalista Donovan Hohn, analisado em laboratório, continha vestígios de benzeno, utilizado comummente na produção de combustíveis, tintas e plásticos. Trata-se de um composto tóxico, carcinogénico, cujos vapores podem causar tonturas, dores de cabeça ou mesmo perda de consciência. Se inalados com frequência, podem levar a leucemias, perturbações gastrintestinais e acidentes neurológicos agudos, entre outros problemas.
O provérbio inglês “What goes around, comes around”, que poderíamos traduzir de forma literal como “O que vai sempre volta”, é apropriado neste contexto. Também poderíamos citar a Lei de Lavoisier: “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Com a ação do vento, da água e do Sol, os plásticos vão-se partindo em pedaços cada vez mais pequenos e, consequentemente, com uma cada vez maior probabilidade de acabarem ingeridos por humanos, seja pela cadeia alimentar, seja por via respiratória.
“Moby-Duck: The True Story of 28,800 Bath Toys Lost at Sea” não é uma história pitoresca sobre bonecos de borracha. É um alerta.
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